segunda-feira, 11 de junho de 2012

Envelhecer



O velho guitarrista- Pablo Picasso
                            
Conheço algumas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-Ihes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticos, aliás, estão ficando cítricos, sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel nos olhos.
E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário: aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto, a gente pensa: o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo público que se pensa humor?
Envelhecer deveria ser como planar. Como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.
Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da ruga do tempo e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo e mesmo lugar - o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos grandes permitida.
Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E, no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma faca nova.
Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até desaparecer sem dor, como quem, caminhando contra o vento, de repente, se evaporasse. E iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria – gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e o Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo e pediram a juventude de volta. Não deu certo. O diabo não joga para perder. Dizem que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.
Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas essenciais: aquele que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isso é verdade.
Parcial, porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: "Penso que podia ir viver com os animais que são tão plácidos e bastam-se a si mesmos."
Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o Sol se queixar no entardecer. Nem a Lua chorar quando amanhece.
Adaptado de SANT’ANNA, Affonso Romano de. Melhores crônicas. São Paulo. Global, 2003, pp. 52-54

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